Faz parte da índole do povo
brasileiro esta capacidade de absorver impactos, de minimizar perdas, de buscar
sempre, nem que seja pela centésima vez, meio de diminuir os efeitos negativos
de comportamentos impróprios de outrem que lhe tenha causado danos.
As
maiores tragédias, com resultados terríveis e até fatais, a desatenção dos
poderes constituídos para com a parte da população atingida, a enorme lentidão
em se prestar o efetivo socorro, a burocracia (para não se falar em
desonestidade) que faz demorar anos a efetiva chegada de recursos aos que
foram atingidos por catástrofes, tudo isto o povo vai assimilando, e enquanto
assimila esquece a responsabilidade de quem a deveria ter demonstrado e continua
a luta, sempre na esperança de que um
dia as coisas melhorarão.
Estamos,
perigosamente, nos acostumando com o mal.
Estamos,
de modo arriscado, convivendo, com certa familiaridade, com a podridão que vai
tomando conta do ar que respiramos, criando uma camada irrespirável com a qual
começamos a encher os pulmões. E olhem que não se trata apenas de atmosfera
física, esta em alto grau de poluição. Falo também da atmosfera moral, da
atmosfera ética, de tal sorte prejudicadas que textos de décadas e décadas atrás,
se tornam atualíssimos e lemos, como se tivessem sido escritas ontem,
declarações como a de Rui Barbosa a respeito de o homem ter vergonha de ser
honesto.
O
direito existe para tornar viável a convivência social e a lei, para tornar
visível o direito.
Quando
este vetor, por qualquer motivo, se torna frágil, a sociedade humana, que não é
angelical, tendo a se tornar diabólica.
Daí
a enorme responsabilidade que tem o legislador, responsável por exprimir em
textos imperativos o comportamento que se deseja para os membros da comunidade,
de modo que a vida entre eles se torne um exercício de paz, de compreensão e de
progresso individual e coletivo.
Por
isto há muito tempo venho afirmando que precisamos desesperadamente de impor
condições mais rígidas de capacitação e comprometimento para aqueles a quem
devamos entregar o poder de criar as leis, discutindo-as, votando-as, pois as
mesmas, depois de sancionadas, se tornarão obrigatórias a todos.
Todas
estas reflexões me vêm à mente, quando leio nas manchetes dos jornais que a lei
abranda penas para crimes de trânsito e, principalmente, que declara serem
homicídios culposos os crimes contra a
vida praticados por pessoas que, dirigindo sob a influência do álcool ou de
outras substâncias com este potencial, atropelem e matem pessoas.
Num
momento em que a violência vai tomando conta do nosso dia a dia, quando se
esperam mudanças drásticas nos Códigos Penal e Processual Penal, vem-me o
legislador federal com esta infausta novidade.
Observe-se
que não comungo com a ideia de que quem atropelou e matou estando embriagado deve ser
enquadrado como homicida e com a agravante do dolo. Veterano nas lides
advocatícias vejo claramente que, inclusive, pode não ter havido crime, posto
que, embora sob o efeito do álcool, pode não ter contribuído de modo algum para
o fato, não se lhe podendo imputar nenhuma responsabilidade pelo acontecido.
É
fácil compreender que, ocorrido o acidente e tendo se constatado o estado de
embriaguez do condutor do veículo, todas as circunstâncias que envolveram o
fato deverão ser avaliadas para que o Ministério Público oferte a denúncia com
ou sem a agravante do dolo ou reconheça que não tem do que acusar o indiciado.
Isto é uma coisa.
Outra
bem diferente é a lei, previamente, declarar que quem mata no trânsito sob a
influência do álcool e similares comete delito culposo. Para o povo em geral
não há grande diferença ( mas todos logo
saberão ), porém, se a condenação à reclusão ( crime doloso ) não gera mais qualquer receio ou vontade de
se buscar um refazimento da vida, a condenação à detenção, sem se falar na
pequenez da pena e na possibilidade de sua transformação, gerará muito menos
respeito.
E
aí aquelas situações terríveis de que temos notícia a toda hora, de pessoas
alcoolizadas ou sob o efeito de drogas dirigindo em alta velocidade e matando
trabalhadores que voltam para casa, de bicicleta, ou dizimando famílias pelo
atropelamento nas calçadas ou nos pontos de ônibus, onde resignadamente esperam
a oportunidade de serem sardinhas enlatadas, vão se tornar muito mais
frequentes, mais comuns...
E
voltamos ao mote do início: Estamos, perigosamente, nos acostumando com o mal.
E
a vida será pequena, mesmo para as grandes almas...
Getúlio Targino Lima: Advogado,
professor emérito ( UFG ), jornalista, escritor, membro e atual presidente da
Academia Goiana de Letras. Email: gtargino@hotmail.com
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